quarta-feira, 11 de março de 2009

RIO CÁVADO .

« imagens do rio cávado ,em Mariz Barcelos»



Rio Cávado
"Eu não lavo as mãos como Pilatos. No decurso da minha vida haverei de vos contar soberbos feitos, as mais desditosas aventuras. Parido em águas límpidas, à minha volta alaga-me um manto de água agasalhado: neve, geada, gelo, chuva, granizo, neblina, nevoeiro, orvalho e... nuvens. Na pedra onde nasci, na fenda geológica em que fui gerado pelas frias ribeiras, no fio de água da serra do Larouco, Barroso, a nordeste de Montalegre, está o útero que não renego, jamais o hei-de renegar enquanto percurso eminentemente nacional, murmurando sensações belas entre altas serras e fragmentos de povos de recomendável cepa.

Desde há séculos que as coisas simples me tocam, sejam notas de flauta pastoril nos espaços solitários, ou homens carregando pedras para o vetusto castelo de Montalegre (século XIII), alta Torre de Menagem com ameias aguçadas, varandins apoiados em mata-cães. Fossem os dias de folganças e então subiam os 1525 metros de altitude do meu pujante Larouco à cata de coelhos ejavalis, por nem sempre haverem de estar às ordens de suas majestades, cuja constância assentavana defesa bélica. Olhem, rio, rio com as brincadeiras das crianças chapinhando-se nas minhas margens e tenho vontade de sorrir ao ver um velho corcovado borrifando os seus amores-perfeitos.

Fui selvagem e indomável pelo serpentear das cachoeiras, ainda irmão doiménico soltava urros, ourso pardo bebia nas minhas correntes aí pelo ano de 1650, depois, nunca mais as águas desse dentaram a robustez a semelhante criatura. Acabou o espécime numa tarde de caloreira abafadiça durante o ágape da bicharada necrófila. Todas as manhãs, ao acordar, abro a Janela do meu quarto e penso no urso pardo mais a sua criação seguindo-o pêlos trilhos, cabeçorra afocinhada. Salmões, manhosas lampreias e relampejantes trutas. Havia a cabra do Geres (Caprapyrenaica lusitanica) que deixei de enxergar encarrapitada em escarpas e espinhaços perscrutando largos horizontes, o sol a despontar, o sol a declinar além montanhas. Conto-vos: Durante o cio, Novembro, Dezembro, os machos lutavam pela posse das Fêmeas num impacto brutal de 90 centímetros de cornos, o que concedia ao vencedor o poder de fecundar todas as suas preferidas. Mas já me pareceu topar uma dessas cabras bravas no Altar dos Cabrões. Estaria eu a sonhar num secreto desejo de reencontro de companhias que durante séculos harmoniosamente conviveram? Ah... pobre, desgraçada cabra-montês que Emílio Biel fotografou nesse Setembro de 1890 presa a uma árvore, trôpega, esperando a morte inglória da raça, esperandoo reino da perenidade encatrafiado num retraio a preto e branco... Desse tempo a águia-real, a "rainha das aves", chamou-lhe o Padre António Vieira. Excitei-me com o seu espectacular voo nupcial, a subida em espiral aproveitando-se dos ares quentes. O homem dormia em cavernas, depois, levantou cabanas colmeadas. Agachando o corpo mergulhava no leito do meu rio sob o olhar do lince, do açor, do milhafre real, do peneireiro, do bufo real, da coruja, da perdiz-cinzenta, da minha, da marta, do toirão, da lontra, do gato-montês, do gavião, da víbora-de-focinho-arrebitado e demais seres sempre de atalaia-la tinham os seus motivos.

Progresso, suores frios e eis-me transformado em força motriz, força geradora sacrificada às turbinas. Dobadoira líquida, dinamizo fábricas; a luz, não a das fogueiras familiares, chega às casas, dispersa-se pelas ruas, invade avenidas. E corro nas torneiras e mato a sede a animais e pessoas e lavo os seus corpos, os seus automóveis, a sua roupa. Rego os seus pomares e jardins, embelezo o viço das suas hortas a todo o momento mimadas. Na cozinha alimento sapiências legadas de um ancestralismo que chega a divinizar o céu da boca. Nas igrejas benzida, lavo os pés pela Páscoa que o buril enxuga. E sou água-benta esconjurando ruindades, conto deantigos rituais que levavam as famílias em procissão a mergulhar nas minhas águas a criança mordida pela moléstia, como o engaranho. Os animais abençoam o meu ser, e por sua suprema vontade, nunca, nunca os peixes de mim se apartariam.


Nas fissuras do meu corpo emergem telhados de escamas de vida, filho de uma partícula de água beijada ao sol, a precisar de horas, de séculos para se integrar no ciclo da água, no desovar da Natureza. Gota de água que foi minha mãe, lágrima de montanha de tempos recuados, um curso então com outorga popular de sagrado, rio sagrado pela solenidade do crisma, moiras encantadas banhando-se pelo enlevo das primaveras luminosas. Um curso-recurso rompendo 129 quilómetros do Larouco a Esposende por entre planaltos, montanhas, planícies, terras bravias e fragosas, granitos de 10 milhões de anos, almofadas de musgos até eu sumir, calmo, resignado, nas águas do Atlântico com o sal respigando novo ciclo a que baptizo, eu te baptizo viagem de regeneração em nome do pai, do filho e de todos os espíritos santos à feição do fervor de cada um.


Há muito conheço viveres e padeceres do Gerês, a geometria do Barroso, da Cabreira, da serra Amarela. Do meu âmago fizeram uma prodigiosa bacia hidrográfica de 1589 quilómetros quadrados propícia a aproveitamentos hidroeléctricos: Alto Cávado, termo de Cambezes do Rio, um poema chamado Alto Rabagão, em Pisões, com regatas, velas borboleteando às brisas; ouço o conhecido velejador Alfredo dos Santos dizer: "Isto é um sonho". Se é!... Passeios de barco, a pé, a cavalo, de bicicleta, porque a maior albufeira do País, usufruto de todo o mosaico de felicidade. A quem nada disto disser, a quem nada disto fizer sentido, nada é. Está prescrito e sem apelo nem agravo. Tão-pouco lhe valha recurso ao tribunal da sensibilidade humana. (...)

Do livro "Cávado - Rio Lindo" de Alfredo Mendes, Edição Águas do Cávado, S. A., Dezembro de 2001.